FANTASIA ORGÂNICA

Seu nome é Maria. Frequentemente ela se perguntava por que tinha esse nome; sua mãe contava histórias de que era pra ter sido Dorothy e que seu pai quase confundiu tudo e a batizou como Adriana; ela se perguntava se teria mudado alguma coisa se ela realmente se chamasse Adriana. Ela já viveu quatorze primaveras e agora vive seu décimo quinto inverno. Maria sabe o nome de todas as capitais da Europa embora nunca tenha estado lá; leu livros que ninguém lê e, embora nunca admita, já chorou assistindo novela.

Já era tarde da noite, ela estava inquieta; estava sentada na cama, a luz do quarto acesa. Fazia tempo que fitava um ponto qualquer na parede tentando organizar seus pensamentos. Tudo estava tão confuso; parecia que todas as coisas tinham resolvido acontecer ao mesmo tempo – o que era muito estranho, antes não acontecia nada. Ela já não sabia o que pensar. Esforçava-se tanto tentando pensar que já saía fumaça de sua cabeça.

Resolveu sair do quarto. Num só ímpeto ela se pôs em e foi até a porta. Não valia a pena esperar e achar que as respostas viriam até ela; ela não ia agüentar muito tempo dentro daquele quarto. E não agüentou. Sem hesitar, abrira a porta e agora estava no corredor.

Aquele era um lugar totalmente novo pra ela; não foi dali que ela veio. Mas aquele lugar era absurdamente familiar. Parecia que aquele lugar a conhecia como a palma de sua mão; aquele lugar já estivera nela antes.

Era um imenso corredor; em nenhum dos lados era possível ver o fim. Portas, todas iguais, infinitamente, dos dois lados do corredor. Sem ter muita certeza do que fazia, sem saber se conseguiria voltar, escolheu, ao acaso, um dos lados – à esquerda ou à direita – e seguiu em passos lentos. Ela não fazia idéia de onde estava indo. Ela nem fazia idéia de o que estava procurando. Ela muito menos fazia idéia das coisas que ia encontrar – se é que ia encontrar.

Sem a curiosidade de saber o que se escondia atrás daquelas tantas portas fechadas, ela, calmamente, caminhou por um longo tempo. Não pensava em nada especificamente. Sua caminhada estava servindo para alguma coisa: ela já não pensava com tanto fervor no que tanto a afligia. Era mais fácil e mais relaxante ocupar a mente com preocupações como o formato das lâmpadas que pendiam no teto, ou que alguns trincos pareciam mais gastos que outros, ou que algumas portas pareciam nunca terem sido abertas.

Quando se deu conta do que estava fazendo, viu que parecia que ela não estava saindo do lugar: sua velocidade era tão constante, e as portas dos dois lados eram tão parecidas que parecia que era o cenário que se mexia. Por isso, era impossível dizer o quanto ela já tinha andado; ou o quão longe ela estava daquele lugar que fora seu quarto.

No limite de onde era possível ver alguma coisa à frente naquele corredor, Maria viu uma porta aberta; a luz que saía daquele quarto era mais forte que as luzes do corredor. Ela apertou o passo, queria ver o que havia naquela sala, até agora ainda não tinha visto nenhum ser vivo – até agora não tinha visto nem uma pessoa.

Depois de andar por alguns minutos, ela viu que não estava chegando perto da porta; parecia que a porta estava exatamente à mesma distância. Pôs-se a correr – sentia-se aflita. Corria com todas as suas forças. E a porta aberta parecia estar tão longe quanto quando ela a viu pela primeira vez.

Maria não estava acostumada a correr; em poucos minutos estava exausta. Foi quando ela percebeu que não era ela quem não estava saindo do lugar, mas a luz que fugia. Sincronizadamente, uma porta se fechava e outra se abria; e as luzes das salas eram iguais, era possível acreditar que realmente era a mesma sala que fugia. Ela já devia ter passado pela primeira porta que vira aberta; certamente, a porta que estava ao seu lado estivera aberta há pouco. Resolveu entrar numa dessas portas. Ainda ofegante, parou e tentou abrir uma porta. Estava trancada. Tentou mais algumas, mas estavam todas trancadas.

Usando suas últimas gotas de energia, pôs a correr como nunca antes; queria alcançar a porta aberta que fugia e conseguir entrar.

Já não agüentava mais correr quando percebeu que a porta parecia estar mais perto. Tentou correr ainda mais rápido, mas, a essa altura, suas pernas não respondiam mais a seu comando; ela corria automaticamente. E estava chegando cada vez mais perto.

Faltava só mais uns três metros, ela estava alcançando. Mas seu corpo não ia agüentar mais. Como que se implorasse para que ela parasse, seu corpo dava sinais de exaustão; sua visão parecia enegrecer, sua respiração falhava. Nos mesmos movimentos automáticos que suas pernas a faziam correr, elas se cruzaram e a fizeram se arrebentar no chão. Com todo o corpo doendo, ela viu que a porta conseguira fugir. Sua visão estava falhando, ela não estava conseguindo ver nada nitidamente. As luzes pareciam estar se apagando. E, no escuro, com a cara no chão, ela era abandonada por seus pensamentos e ia perdendo a consciência.

Depois de um tempo muito longo, que poderia ter sido horas, dias ou séculos, Maria, aos poucos, recuperava a consciência. Ainda deitada no chão, ela sentia seu corpo todo doendo; ainda ofegava. Sua cabeça latejava e, conforme sua visão voltava, conseguia discernir que ainda estava no mesmo corredor. Todas as portas estavam fechadas; não havia luz saindo de nenhuma delas.

Assim que ela se pôs em pé, o mundo começou a girar mais rápido. Um alarme ensurdecedor começou a tocar. Maria não sabia o que significava, mas sabia que não podia ficar ali.

A alguns metros de distância um sujeito tentava chamar sua atenção, ele gritava desesperadamente para ela. Ela não sabia o que fazer. O sujeito fazia sinal para que ela o seguisse. Com medo do que estava por vir, ela decidiu acompanhá-lo. Sua cabeça estava a mil, seus pensamentos ferviam-lhe na cabeça. E o alarme não ajudava em nada.

O estranho tirou uma chave do bolso e abriu uma das portas.

­­­­­­– Depressa! Entra aqui! – Ele falava alto para que ela pudesse ouvir.

Ao passar pela porta e ver onde estava, Maria teve uma das piores sensações de sua vida. Eles estavam num corredor exatamente igual ao anterior. Era paralelo àquele; este seguia aquele dividindo a mesma parede. E era tão longo quanto aquele.

– Está tudo igual, não parece? – perguntou o estranho, que, agora, prestando maior atenção, Maria via, vestia uma camisa branca e suas calças eram verdes e curtas e eram penduradas em seu ombro por suspensórios também verdes. – Mas não está. Teu destino mudou completamente agora.

O que quer que ele tenha querido dizer com isso, Maria não conseguiu entender. Ela tentava prestar atenção no que ele dizia, mas não conseguia. Dos dois cantos de sua boca saíam linhas pretas retas para baixo, como se seu queixo fosse desencaixável da cabeça.

– Poderias ter dito não – disse ele vendo que ela não tinha entendido onde ele queria chegar com esse assunto. – Mas decidiste vir comigo. Mas isso era óbvio; não dirias não.

– Sim! O destino nos pôs juntos aqui agora! – acrescentou, vendo que ela começava a entender. – Eu não acredito que tudo esteja escrito: não é preciso. Deus, ou sei lá quem, não precisava escrever o óbvio. Ao te desenhar e pôr essas opiniões – e não outras – em ti, ele determina teu destino. Somos apenas marionetes. Ou achas que escolheste gostar de verde?

Agora que entendia o que aquele estranho queria dizer, Maria resolveu voltar pela mesma porta que vieram; se o destino dela tinha mudado completamente ao entrar por aquela porta, ela poderia fazer voltar a ser como era antes ao passar pela porta novamente.

Ela abriu a porta e percebeu que o alarme ainda tocava. E agora que ela estava mais acordada e seu raciocínio mais rápido, pareceu que não era um alarme, mais parecia um despertador.

– Não adianta ­– disse o estranho –, teu destino já está mudado, mesmo que voltes. A tua “escolha” consistia em vir ou não comigo, voltar pra aquele corredor já é outra escolha.

Maria fechou a porta. Resolvera ficar nesse mesmo corredor.

Uma senhora, de umas três vezes a idade de Maria, vinha na direção deles. Ela estava muito bem vestida, sua roupa parecia ser bem cara. Ela vestia um casaco de pele que era bonito; anéis por quase todos os dedos e um colar de pérolas no pescoço.

– Olá, meus queridos! – disse a senhora com um enorme sorriso. Maria respondeu com um sorriso tímido e acenou com a cabeça.

– Não fiquemos aqui parados! – acrescentou a senhora, pondo-se a andar e dando tapinhas nas costas dos jovens como que os empurrando. – Meus sentidos me dizem que logo vai chover. Vocês não vão querer se molhar, vão?

– Mil perdões, madame – respondeu o estranho, fazendo uma enorme reverência. – Tenho outros afazeres por fazer; meu destino me impele a outra direção. Mas certamente hemos de nos encontrar outra vez.

– E não poderemos nem saber o seu nome? – perguntava a senhora num tom de exagerado interesse; saber seu nome parecia-lhe muito importante, como se isso fosse fazê-lo deixar de ser estranho.

– Faz pouca diferença, afinal – dizia o estranho. – Fazei desta forma: colocai-me no mesmo saco onde colocais todas aquelas pessoas estranhas com as quais trocais uma palavra ou outra; aquelas que apenas vos perguntam onde fica a estação, ou com as quais travais assuntos mais elaborados – como o tempo.

E, assim, deu as costas e saiu na direção de onde a mulher viera. – Adeus! – disse-lhe a senhora.

– Adeus! E até logo! – disse ele voltando-se para as moças e fazendo mais uma exagerada reverência. Quando ele finalmente se foi, e as mulheres ficaram em silêncio, Maria percebeu que havia cordas, amarradas em seus braços, pernas e cabeça, que, esticadas, sumiam no teto.

– Vamos, minha linda? – a senhora havia lhe tirado do devaneio.

As duas seguiram pelo corredor. Apesar da pressa que se estampava em seu olhar, a senhora não caminhava muito rápido; seus passos eram firmes, todavia.

Sem dizer nada, Maria caminhava cabisbaixa ao seu lado; seu pensamento estava bem longe daquele corredor quilométrico de portas redundantemente iguais. Perguntava-se quanto tempo tinha passado. E se alguém estivesse atrás dela?

– Você não é do tipo que fala, não é? – a senhora interrompera o silêncio. Maria não sabia o que dizer.

– Não. Nem precisa falar nada. – A senhora fitava o horizonte. – Assim, você já responde minha pergunta.

– Devo colocar a senhorita no mesmo pacote em que me sugeriu o moço de agora há pouco? – Maria sorriu; aquele tinha sido o jeito mais peculiar que alguém já tinha perguntado seu nome.

– Adriana.

– Uma moça de poucas palavras, portanto. Mas fala! – exclamou com entusiasmo a senhora – Para que eu não seja chamada de A-Senhora-Que-Adriana-Encontrou-No-Corredor, digo-lhe meu nome: Sofia.

Sofia parou e, com um sorriso, estendeu a mão. Ainda bem tímida, Maria apertou sua mão.

Terminada a cerimônia de apresentação, iniciou-se o monólogo.

– Muito bem, então, Drica! – posso te chamar de Drica? Acho um nome tão bonito! – Maria não respondeu. Certamente só sua mãe a chamaria assim. – Aonde você vai? Certamente não tão longe quanto eu. Caminho aqui desde que me lembro; acho que nasci aqui – nesse corredor.

– Não venho do começo; não sei o quão longo é esse corredor. Acho, inclusive, que não vou conseguir chegar no seu fim. Sempre tentaram me convencer, na verdade, que ele não tem fim – afinal, o que teria depois do fim? Podemos andar o quanto pudermos e não vamos chegar no fim.

– Finitude, entretanto, é uma convenção humana. Temos todo o espaço que quisermos aqui. Todo o tempo do mundo também! Não convém sistematizar algo tão natural; tanto faz a quantidade de tempo que estamos juntos, ele já está imortalizado. Quando conseguirmos conceber essa idéia tão plausível, seremos eternos. Certamente andarei por séculos nesse corredor.

Maria não sabia se entendera tudo que ouvira.

Andaram lado a lado por um bom tempo; em silêncio. Maria tentava de algum jeito digerir toda a baboseira que Sofia dissera. Nada do que lhe acontecera recentemente parecia fazer sentido; ela já não sabia dizer quanto tempo tinha passado – não saberia mais dizer quem era ela e/ou o que estava fazendo ali, naquele específico momento.

– É tudo um ciclo – disse Sofia quebrando o silêncio e trazendo Maria de volta à Terra; seus olhos se perdiam à distância no fim do corredor. – Estamos, praticamente, andando em círculos. Não sei dizer até onde vai esse corredor, mas tenho certeza que numa determinada hora voltaremos ao princípio.

Para Maria, não havia nada nesse lugar que o impedisse de ser o começo.

– Se nos desapegarmos dessas convenções, podemos dizer que somos eternos! – Ela escancarava um enorme sorriso e erguia os braços enquanto falava. – Talvez minha alma seja jovem ainda! Talvez eu ainda tenha quinze anos!

Essa constatação deixou Maria inquieta. Ela se sentia muito mais madura agora. Seja o que for que tenha acontecido nesse corredor, a fez abrir os olhos e enxergar dentro de si mesma.

Ou, talvez, tenha passado muito tempo dentro deste corredor. Embora seu corpo não tenha sentido, sua alma envelheceu milhares de anos.

Mas seus devaneios não foram muito longe.

Pela fresta embaixo da porta era possível ver que relâmpagos coloridos brilhavam dentro de uma das salas. Maria era atraída por aquela porta; sentia uma imensa vontade de entrar. Na porta estava escrito algo que ela não foi capaz de entender; pensou que talvez fosse um anagrama. Mas a idéia de estar lá dentro lhe venceu e ela jamais soube o que estava escrito.

Abriu a porta; no fundo da sala, havia uma criança sentada no chão. Não dava pra saber se era um menino ou uma menina. No topo de sua cabeça, onde estaria o cabelo, havia um enorme buraco. Enormes bolas de luz coloridas saíam de quadros das duas paredes laterais e entravam no buraco na cabeça da criança; cada vez que isso acontecia, as luzes explodiam numa forte luz branca que enchia a sala e a criança tremia.

Maria estava chocada. Embora não tenha se esforçado nem um pouco para entender o que seria aquele processo, embora aquilo estivesse além de sua compreensão, ela se sentiu nauseada. De certa forma, aquela cena a repugnava.

E, da mesma forma que fora atraída àquela sala, Maria sentia um enorme desejo de sair dali. Sem hesitar, ela saiu correndo da sala batendo a porta atrás de si.

O corredor estava vazio outra vez. A senhora que Adriana encontrou no corredor sumira. Maria estava sozinha outra vez. Resolveu caminhar na direção que as duas estavam seguindo. Em passos rápidos e largos, tentava – o que logo perceberia ser em vão – alcançar a senhora.

Perguntou-se quanto tempo passara olhando para aquela criança; não seria possível que em tão pouco tempo a senhora conseguisse sumir de vista. Mas, embora não tivesse entendido tudo o que Sofia tenha querido dizer, tempo já não lhe era a mesma coisa.

Voltou a caminhar em passos curtos. Enganava a si mesma dizendo que tinha todo o tempo do mundo.

Então, como Sofia preverá, começou a chover.

A água que lhe escorria na cara era morna, como a de um chuveiro. Em poucos minutos, ela estava completamente molhada.

O relógio estava parado. Ou girava rápido demais. Sozinha, perdida em seus pensamentos, Maria caminhou. Era impossível dizer quanto tempo tinha se passado; tudo aquilo era muito igual, era impossível dizer quanto em espaço ela já tinha percorrido.

Ela sentia sua mente vazia. Não pensava em nada – caminhava apenas. Já nem processava o que lhe acontecia naquele corredor. A água que se lhe escorria pelo corpo agora estava fria, mas ela não se preocupava com isso. Nas salas com portas abertas se via as mais bizarras coisas, mas ela já não se importava – o bizarro tinha se lhe tornado banal.

Numa das salas, havia uma moça, de uns vinte e poucos anos, nadando numa piscina com um líquido esbranquiçado que Maria logo reconheceu como sendo gordura suína. A moça nadava com o maior entusiasmo; aquilo lhe proporcionava um prazer desmedido. Maria meramente passou os olhos por essa cena; em algum lugar de sua memória armazenou aquilo, embora, claramente, ela não tenha feito questão.

Num canto qualquer por onde ela passou, havia um homem sujo deitado no chão. Ele parecia estar doente, morrendo – seu olhar era de súplica. Mas Maria não fez nada, ele era um mendigo.

Esse turbilhão de pensamentos a desnorteou. A essa altura, ela já tinha se esquecido completamente de que talvez existisse um mundo lá fora. Perguntava-se, entre outras coisas, se existia uma saída nesse corredor.

Foi quando se deu conta de que estava perdida. Sabia que, sozinha, não seria capaz de voltar.

Poucos metros adiante tinha uma porta entreaberta. Resolveu entrar ali.

Essa sala era bem diferente das outras que ela tinha entrado. Nas paredes, quase que aleatoriamente, estavam dispostas todas as cores; e era harmonioso, entretanto. Havia letras que se contrastavam entre si; umas maiores, outras menores; estavam organizadas numa ordem que Maria não entendia.

Num dos cantos, quase imperceptível no meio de toda aquela bagunça visual, havia um pequeno cubo de vidro com um enorme cão peludo dentro – grande demais para caber ali. Um São Bernardo, talvez.

Seu focinho se projetava para fora por uma pequena saída na parte de cima da caixa; por ali, o enorme cão respirava, lentamente. Puxava pouco ar de cada vez, em seus pulmões comprimidos não caberia muito ar. Ele não conseguiria dar um suspiro.

Ele parecia estar dormindo; seus olhos estavam fechados. Uma expressão serena se estampava em seu rosto – parecia que apesar das condições a que fora submetido ele estava bem. Ele estaria abanando o rabo se conseguisse.

Tentando não fazer barulho e acordar o cachorro, Maria começou a andar pelo quarto analisando as paredes. De tão intensas que eram as cores em determinados pontos, parecia que estavam se movendo ou, então, que eram tridimensionais.

Na parede oposta, no outro lado do quarto, um desenho lhe chamou a atenção: uma menina cavalgava em um cavalo por uma grande colina; no fundo, reluzia um arco-íris. O mais interessante eram as cores; nada tinha sua cor habitual: os olhos da menina eram lilás e o cavalo era alaranjado.

Maria caminhou para ver mais de perto. À medida que se aproximava, era mais difícil entender o desenho. Quando chegou bem perto da parede, a cena tinha se tornado uma enorme mancha colorida. Ela deu uns passos para trás para tentar ver a cena de novo. Mas de forma alguma conseguia enxergar a menina ou o cavalo. Tudo agora era apenas tinta borrada sem sentido nenhum.

– Eu também passaria a eternidade tentando entender tudo que se passa nessa parede – disse uma voz misteriosa que ecoou no silêncio da sala; assustou Maria. Ela se virou tentando encontrar quem poderia ter dito isso. Esperava que não fosse uma alucinação.

– Calma, calma! – antes que ela se desesperasse a voz respondeu. – Não se assuste! – Era o cachorro quem falava! E ele, audaciosamente, sorrindo, piscou um olho pra ela.

Maria, atônita, não se mexeu; apenas encarava o cachorro. – Sim, eu falo – continuou o cachorro num tom que tentava acalmar a menina. – Na verdade, um dia fui um ser de sua espécie. Decidi deixar tudo parar trás e viver aqui.

Ela não falava nada; mas o cachorro entendia que, com seus olhos, ela ordenava que ele continuasse falando e se explicasse.

– Fui eu que quis me trancar numa caixa. – Ele tinha dificuldade para falar; só um pedaço de seu focinho passava pela pequena abertura na caixa, isso prejudicava sua dicção. Era difícil entender o que ele falava.

– Liberdade não é para os homens – continuou. – Preferi ficar literalmente preso a alguma coisa; assim, minha mente voa livre. Não preciso me preocupar com meu corpo. Vivo, por assim dizer, no mundo das idéias.

O que o cachorro dizia era tão bem contado que parecia fazer sentido. Mas ela não conseguia focar sua atenção. Todo lugar em que olhava, ela conseguia ver figuras, pessoas, brinquedos e sentimentos. Mas tampouco prendiam sua atenção; ela não ficava muito tempo olhando uma imagem só.

– Vivo num mundo espiritual – continuou o cachorro, vendo que, embora não estivesse conseguindo prestar atenção, a menina queria entender o que quer que se tentasse dizer para explicar o que aquilo significava. – A alma é superior ao corpo; o corpo apodrece! É com sua alma que você vai sentir suas emoções. Ainda que seja seu nariz que sinta o perfume do campo, é sua alma que sente o prazer de estar ali.

Havia um ponto de interrogação estampado no rosto de Maria. Ela tentava, de todo jeito, engolir o que o cachorro dizia.

– Entendi. A minha história é baboseira pra você. Não estou esclarecendo suas dúvidas. Escute, menina – na sua voz tinha um tom amigável como se ele falasse de pai pra filha. – As respostas não virão até você. Elas estão dentro de você. Você bem sabe o que tudo isso quer dizer, ainda lhe custa acreditar. Um dia você entende; quando você for mais sensível, quando você for capaz de analisar as minúcias.

– Ou você esperava que fosse só caminhar até o fim desse tal corredor que no fim tudo ia fazer sentido? Achou que era só ler até o final d’O Livro e teria suas respostas? Nem que você andasse todas as páginas de todos os livros, menina.

Ela prestava atenção e, embora concordasse que aquilo parecia fazer sentido, ela não entendia onde ele queria chegar. Sem falar nada, resolveu sair e continuar sua caminhada.

– Não! Não vá! – O cão implorava. – Você não entendeu tudo que eu tenho pra falar! – Mas ela saiu.

O cão se debatia dentro da caixa, implorava para que a menina ficasse. A caixa tombou e ele caiu de cara no chão. Ele gritava, berrava. Sua boca começou a espumar, saía sangue de seus olhos. Parecia que só o que ele queria era alguém pra conversar. Maria voltou e fechou a porta.

Maria se sentia exausta, mal conseguia andar; cambaleava apoiando-se nas paredes. Parecia que o infinito corredor parecia ainda maior; ela olhava lá na frente e não conseguia de jeito nenhum ver o fim. Sentia que suas pernas não suportariam.

Foi quando nos encontramos. Ela me olhou nos olhos por alguns segundos. Retribuí. Perguntei-lhe se voltaríamos a nos ver. Não obtive resposta. Acho que não.

Sem muito pensar, ela entrou numa das portas. Sentou-se na cama que havia ali dentro. Aquilo parecia ser seu quarto. A cada segundo, as coisas pareciam fazer menos sentido. Um segundo significava agora alguma coisa muito diferente daquilo que era. Era muita informação. Não eram bem essas coisas que ela esperava encontrar quando resolveu sair.

Por muito tempo fitou um ponto qualquer na parede tentando organizar seus pensamentos. Tudo estava tão confuso; parecia que todas as coisas tinham resolvido acontecer ao mesmo tempo – o que era muito estranho, antes não acontecia nada. Ela já não sabia o que pensar. Esforçava-se tanto tentando pensar que já saía fumaça de sua cabeça.